É com ansiedade que aguardamos o julgamento do Recurso Extraordinário n. 473045 pelo Supremo Tribunal Federal.
O caso, sob a relatoria do eminente Ministro Gilmar Mendes, envolve a discussão sobre a constitucionalidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica em matéria de crimes contra o meio ambiente em nosso país.
Caberá a Suprema Corte dizer se o artigo 3º da Lei 9.605, de 1.998, ao disciplinar o artigo 225, parágrafo 3º, da Constituição Federal, está ou não em sintonia com a ordem constitucional vigente.
O que se percebe é que, a par das diversas vertentes doutrinárias existentes, há um consenso em termos de a pessoa jurídica não poder ser utilizada como um escudo de impunidade para legitimar a prática de ilícitos penais.
O Brasil, acompanhando a recente evolução histórica e, em afinidade com os congressos internacionais de direito penal que tem recomendado a adoção de medidas tendentes a criminalização das pessoas jurídicas, tal como o fizeram Holanda, Portugal e França, inseriu em seu ordenamento jurídico a responsabilidade penal da pessoa jurídica.
Assim foi que a Constituição da República Federativa do Brasil, em seus artigos 173, §5º e 225, §3º, adotou a responsabilidade penal da empresa por delitos contra a ordem econômica e economia popular bem como por infrações ao meio ambiente, sendo certo que no âmbito da tutela dos bens ambientais a matéria foi disciplinada no plano ordinário através da Lei nº 9.605, de 1.998.
Inobstante em vigor, viceja forte entendimento doutrinário sustentando a inconstitucionalidade da responsabilidade penal das pessoas jurídicas regulada pelo artigo 3º da Lei dos Crimes Ambientais. Assevera-se, sobretudo, a afronta aos princípios constitucionais da responsabilidade pessoal, da isonomia e da personalidade da pena, além do aviltamento à teoria do crime dada a ausência de culpabilidade das pessoas jurídicas.
De outro lado, os defensores da responsabilidade penal das empresas rebatem essas críticas, alegando, em síntese, a insuficiência da sistemática da responsabilidade pessoal para dissuadir o cometimento do delito no âmbito das empresas; o reconhecimento dos entes coletivos como pessoas reais, cuja vontade é expressa através de seus órgãos que são capazes de cometer infrações criminais; enfim, sobretudo por razões de política criminal, argumentam que os ilícitos cometidos no seio da pessoa jurídica não encontravam uma resposta normativa suficiente nas medidas sancionatórias de caráter civil e administrativo, tornando-se imperiosa a reprovabilidade penal.
Essa controvérsia vem sendo dirimida pela jurisprudência cujo entendimento, apoiado em razões de política criminal, tem-se inclinado a colher a responsabilidade penal das empresas pelos delitos contra o meio ambiente, reconhecendo, pois, a constitucionalidade do artigo 3º da Lei nº 9.605/98[1].
Ao lado dessa discussão, outras críticas são levantadas em desfavor do artigo 3º da Lei nº 9.605/98. Questiona-se a dificuldade de aplicar a lei visto que o legislador nacional – diferentemente do francês que tomou o cuidado de adaptar de modo expresso essa espécie de responsabilidade no âmbito do sistema tradicional – de forma simplista, ao procurar instituir a responsabilidade penal da pessoa jurídica, apenas a enunciou, cominando-lhe apenas sem lograr contudo instituí-la[2].
Sem embargo, consoante a lei em regência, para que se estabeleça a responsabilidade criminal das empresas, é necessária a presença das seguintes condições: a) existência de uma infração criminal; b) cometida por decisão do representante legal ou contratual da empresa, ou de seu órgão colegiado; c) no interesse ou benefício da sua entidade.
Desse modo, fica assentado que além dos elementos objetivos indispensáveis para a formação do tipo penal, requer-se do órgão ou do representante do ente coletivo, um elemento subjetivo, ou seja, que o delito, que não pode estar situado fora da esfera da atividade da empresa, seja praticado no interesse ou benefício da mesma.
A esse propósito, oportuno registrar o que concluiu o ilustre Ministro Gilmar Mendes diante da “notória lacuna na tentativa de vincular a conduta do ex-presidente da Petrobrás e um vazamento de óleo ocorrido em determinado ponto de uma malha de mais de 14 mil quilômetros de oleodutos” no sentido de que não se poder admitir, para fins de responsabilidade pessoal, uma equiparação tosca entre atos de pessoa jurídica e atos de seus dirigentes[3].
Pondere-se ainda que diante da exigência de punir todos aqueles que comprovadamente concorreram à pratica delituosa, para que se estabeleça a responsabilidade dos entes coletivos, de rigor a concomitante co-responsabilidade da pessoa física que com auxílio do poderio da pessoa jurídica perpetrou o delito; assim, o reconhecimento da responsabilidade penal da empresa sempre se dará mediante co-autoria necessária da pessoa individual estreitamente ligada ao ente coletivo.
No que toca as penas correspondentes aos crimes praticados pelas empresas também não se economizam críticas, especialmente quanto à liquidação forçada da pessoa jurídica que afigura verdadeira pena de morte, revelando-se, pois, inconstitucional. Neste particular, dado o amplo leque de sanções possíveis de serem impostas às empresas (multa, penas restritivas de direitos e prestação de serviços à comunidade) deverá o aplicador da lei compatibilizar a sanção penal com a natureza dos agrupamentos a fim de efetivar a justiça.
Fato é que a Lei dos crimes ambientais, ao regulamentar o dispositivo constitucional da responsabilidade penal das empresas (artigo 225, §3º), o fez de maneira deficiente e lacunosa, limitando-se a prever um rol de sanções penais, deixando de especificar quais as condutas passíveis de serem imputadas às pessoas jurídicas.
Tal falha, a nosso sentir, compromete sua compreensão e aplicação imediata, sem olvidar a incompatibilidade com a Constituição Federal (incisos 39, 45, 46 e 55 do rol das garantias individuais)[4].
Firme nesse pensamento, aguardamos que com o vindouro julgamento acerca da matéria pela Suprema Corte[5] sejam dirimidas as controvérsias ainda existentes, garantindo assim a segurança jurídica necessária para efetiva aplicação da responsabilidade criminal da empresa em matéria ambiental em nosso país.
NOTAS
[1] Tribunal de Justiça de São Paulo (extinto Tribunal de Alçada Criminal): MS 349.440/98, HC 351.992/2; Tribunal de Justiça de Santa Catarina: Recurso Criminal 00.020968-6; Tribunal Regional Federal da 1ª Região: Mandado de Segurança nº 2005.01.00.058946-8/TO; Superior Tribunal de Justiça: Recurso Especial n. 784.952/MG; Recurso Especial n. 665.212/SC; Recurso em Mandado de Segurança n. 16.696/PR. Em sentido oposto: Tribunal de Justiça de Minas Gerais: Apelação Criminal n. 1.0155.02.000841-5/001; Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios: Apelação Criminal n. 1637296/DF; Tribunal Regional Federal da 5ª Região: RCCR NV 341/RN (2000.05.00.013049-9); Superior Tribunal de Justiça: Recurso Especial n. 622.724/SC.
[2] PRADO, Luiz Regis. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: fundamentos e implicações, in PRADO, Luiz Regis (coordenador). Responsabilidade penal da pessoal jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 130.
[3] Ressaltou, outrossim, que não estava excluindo a possibilidade da prática de crimes por parte de dirigentes das pessoas jurídicas justamente na direção de tais entidades (HC n. 83.554/PR, j. 16.08.05). Interessante, no mesmo sentido, precedente do C. STJ (HC 27.587, relator o Ministro Hamilton Carvalhido.
[4] Registramos ainda como insuperável a inconstitucionalidade da pena de liquidação forçada prevista do artigo 24 da Lei 9.605/98 frente a alínea “a” do inciso 47 do mesmo artigo 5º da Carta Política.
[5] Esse recurso foi interposto pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina contra acórdão do Tribunal de Justiça daquele Estado, que manteve o entendimento no sentido de que a responsabilização penal da pessoa jurídica não está prevista nos princípios penais extraídos da Constituição Federal. O parecer da Procuradoria Geral da República é pelo conhecimento e provimento do recurso.
artigo disponível em www.ibccrim.org.br, publicado em 30/06/2009 (à época o relator era o Ministro Cezar Peluso)