Há tempos vêm decidindo nossos Tribunais que o crime previsto no art. 89 da Lei 8.666/93 é de mera conduta, sufragando o entendimento segundo o qual seria dispensável a prova do prejuízo para atrair a incidência da lei penal.(1)
Sob os auspícios da mais moderna doutrina, essa visão formalista do Direito Penal deve ceder espaço ao conceito de tipicidade penal de cunho constitucionalista, a exemplo do que vem sendo sustentado por Luiz Flávio Gomes,(2) conquanto não mais se coaduna com o Estado constitucional, democrático e garantista de Direito.
Em sendo assim, faz-se de suma importância a verificação do resultado da conduta, vale dizer, aferir se houve ou não lesão concreta ao bem jurídico protegido (prejuízo ao erário), para perfazer a tipicidade da conduta glosada pela norma penal especial, qual seja, a de dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade.
Coerentemente com o princípio da ofensividade,(3) quando ausente dano ao erário, não haverá espaço para se falar em tipicidade material do crime previsto no art. 89 da Lei de Licitações.
Tal entendimento, aliás, encontra ressonância não só na doutrina,(4) como na jurisprudência do C. Superior Tribunal de Justiça, como se extrai, exemplificativamente, dos seguintes precedentes: APN 261, rel. Min. Eliana Calmon, DJU 05.12.2005; APN 323, rel. Min. Fernando Gonçalves. j. 05.10.2005, DJU 13.02.2006; APN 375, rel. Min. Fernando Gonçalves, DJU 04.04.2006.
E nem poderia ser diferente.
Na perspectiva da tipicidade conglobante,(5) o exercício do poder punitivo não pode se tornar uma irracionalidade. Diz-se mais. Deve existir coerência na aplicação do Direito, considerado como um todo.
Não é o que se vê na hipótese em exame.
O próprio STJ,(6) assim como o TJSP,(7) na análise do ilícito civil (art. 10, inc. VIII, da Lei 8.429/92) cuja conduta reprimida é a mesma, vem decidindo que sem a prova do prejuízo concreto ao erário e do dolo do agente não há que se falar em improbidade administrativa.
Daí porque, longe de querer contornar a independência das instâncias (realmente não é essa a lógica do raciocínio), mas enfatizando a subsidiariedade do Direito Penal e a própria necessidade de interpretação sistemática do ordenamento jurídico, é que se sustenta a superação da classificação do crime previsto no art. 89 da Lei de Licitações como sendo de mera conduta.
A confirmar a coerência dessa exegese (mesma interpretação para as leis ordinárias de 1992 e 1993), de exigir-se prova do dano ao erário para configuração do ato de improbidade e do crime, convém salientar disposição da Lei das Inelegibilidades (LC 64/90) com redação dada pela LC 135/10 (Lei da “Ficha Limpa”), que considera inelegível para qualquer cargo “os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio públicoe enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 08 (oito) anos após o cumprimento da pena” (art. 1º, inc. I, alínea l).
Se o legislador considerou o dolo e o prejuízo ao erário como requisitos para ensejar a hipótese de inelegibilidade por ato de improbidade (como já sedimentado pela jurisprudência do STJ), por razões lógicas, os mesmos requisitos devem ser observados na hipótese de crime, que igualmente traduz causa de inelegibilidade (art. 1º, inc. I, alínea e, número 1).
Essa, em nossa opinião, a melhor hermenêutica para aplicação das normas restritivas de direitos no âmbito cível e criminal que deságuam no cerceamento de direitos políticos: prova do dolo e do prejuízo ao erário são indispensáveis para a configuração do ato de improbidade administrativa previsto no art. 10, inc. VIII, da Lei 8.429/92 e do crime previsto no art. 89 da Lei 8.666/93.
Outra questão interessante que merece maiores reflexões diz respeito à aplicação da norma diante de condutas praticadas por prefeitos ou vereadores.
Parece-nos clara a inconstitucionalidade da pena prevista no art. 89 da Lei 8.666/93, por ofensa aos princípios constitucionais da isonomia e da proporcionalidade ao dispensar tratamento mais severo para conduta idêntica à prevista no Dec.-lei 201/67 (art. 1º, inc. XI).
Efetivamente, o bem jurídico protegido tanto pela Lei 8.666/93 (art. 89) como pelo Dec.-lei 201/67 (art. 1º, inc. XI, § 1º) é o mesmo: o patrimônio público.
Nesta ordem de ideias, revela-se de patente inconstitucionalidade o preceito secundário do art. 89 da Lei de Licitações, ao punir mais severamente a conduta daquele que dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses legais, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade (detenção de 03 a 05 anos, e multa), do que de quem adquirir bens, ou realizar serviços e obras, sem concorrência ou coleta de preços, nos casos exigidos em lei (detenção de 03 meses a 03 anos), conforme redação do art. 1º, inc. XI, em combinação com o § 1º, do Dec.-lei 201/67.
Não bastasse a ofensa ao princípio da isonomia, o vício de inconstitucionalidade também se revela pela afronta ao princípio da proporcionalidade, ínsito ao Estado Democrático de Direito.
Por tais breves considerações, conclui-se que o crime previsto no art. 89 da Lei 8.666/93 é de resultado e não de mera conduta, não se olvidando que o preceito secundário do dispositivo legal em questão padece de inconstitucionalidade, por ofensa aos princípios da isonomia e da proporcionalidade, ao dispensar tratamento mais severo para conduta idêntica àquela prevista no art. 1º, inc. XI, do Dec.-lei 201/67.
NOTAS
(1) O tipo previsto no art. 89 da Lei 8.666/93 é delito de mera conduta, não exige dolo específico, mas apenas o genérico, representado, portanto, pela vontade de contratar sem licitação, quando a lei expressamente prevê a realização do certame (STJ, 6ª Turma, HC 113.067/PE, rel. Min. Og Fernandes, j. 21.10.2008). Em igual sentido, dentre tantos outros precedentes: TJSP, 15ª Câmara de Direito Criminal, Apelação
0002763-72.20058.26.0430, rel. Des. J. Martins, j. 22.09.2011; TJRS, 4ª Câmara Criminal, Ação Penal – Procedimento Ordinário n. 70043547785, rel. Des. Gaspar Marques Batista, j. 29.09.2011.
(2) Direito penal, Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, v. 2,p. 268 e ss.
(3) Partindo-se da premissa de que o desvalor do resultado (resultado jurídico) é o fundamento primordial do delito (do injusto penal), não há dúvida de que esse Direito Penal (da ofensividade) não se coaduna com o perigo abstrato (que é inconstitucional e inválido dentro do Direito Penal) (GOMES, Luiz Flávio. Direito penal…cit., p. 283).
(4) Quando a conduta realiza formalmente o tipo penal (caso do art. 89, caput), mas não produz nenhum resultado jurídico desvalioso, não há que se falar em lesão ao bem jurídico. A contratação sem licitação fora das hipóteses autorizadas por lei é formalmente típica, mas não materialmente típica quando não produz lesão ao bem jurídico protegido (erário público). Por falta de ofensa concreta ao bem jurídico, não há que se falar em tipicidade penal (GOMES, Luiz Flávio. Direito penal…cit., p. 285-286). “Não se aperfeiçoa o crime do art. 89 sem dano aos cofres públicos. Ou seja, o crime consiste não apenas na indevida contratação direta, mas na produção de um resultado final danoso (…). Não se pune a mera conduta, ainda que reprovável, de deixar de adotar a licitação. O que se pune é a instrumentalização da contratação direta para gerar lesão patrimonial à Administração” (FILHO, Marçal Justen. Comentários à Lei de Licitações e contratos administrativos, 12. ed. São Paulo: Dialética, 2008, p. 830).
(5) ZAFFARONI, Eugenio Raul; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho penal: parte general. Buenos Aires: Ediar, 2001, p. 46q e ss.
(6) “Esta Corte, em precedente da Primeira Seção, considerou ser indispensável a prova de existência de dano ao patrimônio público para que se tenha configurado o fato de improbidade, inadmitindo o dano presumido. Ressalvado entendimento da relatora. Após divergências, também firmou a Corte que é imprescindível, na avaliação do ato de improbidade, a prova do elemento subjetivo” (2ª Turma, REsp 621.415/MG, rel. Min. Eliana Calmon, DJ 30.05.2006, p. 134). No REsp 480.387/SP, relatado pelo Min. Luiz Fux, 1ª Turma, está confirmado o entendimento acima enfocado, isto é, não demonstrado o prejuízo ao patrimônio público não há improbidade administrativa.
(7) As condutas tipificadas no art. 10 da Lei 8.429/92 exigem que o autor demonstre a lesão efetiva ao erário, não bastando a lesão presumida (TJSP, 10ª Câmara de Direito Público, Apelação Cível com Revisão 603.922-5/2-00, rel. Des. Torres de Carvalho). Ainda: “Sem um ato intencional e a ocorrência de enriquecimento ilícito do agente ou de prejuízo ao erário, a terceiro, ou de ofensa aos princípios da administração pública não se há falar em ato ilícito que imponha o dever de reparar” (TJSP, 3ª Câmara de Direito Público, AC 56.235-5, Rel. Des. Rui Stoco, j. 21.03.2000).
artigo publicado no Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 19, n. 229, p. 16-17, dez., 2011.