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Os flanelinhas e o direito penal

Pulverizados pela cidade, não há como escapar do assédio dos “flanelinhas”. Há os dois lados da moeda. O incômodo da abordagem não é maior do que a angústia de quem, desempregado, precisa prover o lar. O problema social parece insolúvel e, dia a dia, a situação vai se agravando. Muitas vezes, ou na maioria delas, difícil não entender o “olhar o carro” como uma forma velada de extorsão. 

Imaginou-se que o Poder Judiciário, com a atuação da Justiça Criminal, fosse a saída. É que pela Lei 6.245, de 1975, o exercício da profissão de guardador e lavador autônomo de veículos pressupõe o registro na Delegacia Regional do Trabalho. E para obter o registro, o interessado deve apresentar os seguintes documentos: 1) prova de identidade; 2) atestado de bons antecedentes, fornecido pela autoridade competente; 3) certidão negativa dos cartórios criminais de seu domicílio; 4) prova de estar em dias com as obrigações eleitorais; 5) prova de quitação com o serviço militar, quando a ele obrigado. 

Ora, enquanto o sujeito não ostentar o registro, estará exercendo ilegalmente a profissão, o que, segundo o Decreto-Lei 3.688, de 1941, configura contravenção penal sujeita a pena de prisão, de 15 dias a 3 meses, ou multa. Mas os tribunais superiores da nação disseram que esse não é o caminho. 

Para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) “não se pode sequer afirmar que os “flanelinhas” exerceriam profissão ou atividade econômica, uma vez que os serviços por eles prestados não são necessariamente remunerados, pois os proprietários dos automóveis por eles guardados ou lavados não são obrigados a lhes pagar qualquer quantia que, se ofertada, constitui mera liberalidade” (RHC 40057/MG, julgado em 17/09/2013 e, recentemente, o RHC 36.280/MG). Já o Supremo Tribunal Federal (STF) considera que “trata-se de conduta minimamente ofensiva, haja vista que a tipificação da conduta em debate visa garantir que as profissões sejam exercidas por profissionais devidamente habilitados para tanto, e, no caso dos “flanelinhas”, a falta de registro no órgão competente não atinge de forma significativa o bem jurídico penalmente protegido” (HC 115046/MG, julgado em 19 de março de 2013).

O Direito Penal não foi capaz de dar uma decisão que ao menos balizasse um enquadramento, ainda que do ponto de vista jurídico, o que ajudaria em relação ao drama que vivenciamos com os “flanelinhas”. Como relembrado pela Suprema Corte no julgamento acima mencionado, o Direito Penal deve atuar sempre como última medida na prevenção e repressão de delitos, ou seja de forma subsidiária a outros instrumentos repressivos.

Se essa é a lógica da Justiça Criminal, e sem polemizar ainda mais se os oportunismos e abusos devem ou não ser encarados como casos de Polícia, fato é que outros caminhos devem ser efetivamente traçados de modo a erradicar da marginalização (um dos objetivos de nossa República) e, assim, dar efetividade à cidadania e à dignidade da pessoa humana (alguns dos fundamentos de nossa República).

Imperativo um enfrentamento corajoso e eficaz na solução desse problema cuja progressão geométrica, mercê de não amenizar os drásticos efeitos sociais de um lado, só vem aumentando o sentimento de insegurança de outro. Sem um encaminhamento efetivo, só se fará aumentar um conflito que já está configurado. Mas esta é outra seara…

artigo publicado no jornal Cruzeiro do Sul, em 18-04-2014

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