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Enfrentamento da impunidade versus o direito de defesa

A regra é(ra) clara: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (Constituição Federal, artigo 5º, inciso 57).

No último dia 17 de fevereiro a Suprema Corte brasileira, revisando posicionamento a que chegara em 2009 (HC 84078), modificou a interpretação da garantia constitucional em questão passando a compreender que basta a condenação em segundo grau de jurisdição para que a pena seja executada (HC 126292).

Reações empolgadas vieram na sequência, sobretudo com a prisão do empresário bilionário e ex-senador Luiz Estevão que, após longa batalha judicial, começou no último dia 8 de março a cumprir sua pena pelo envolvimento no superfaturamento da construção do fórum trabalhista de São Paulo ocorrido em 1992.

Parece não existir dúvidas de que o anacrônico sistema de justiça criminal dotado de um superlativo hiato entre o crime e a responsabilização pela sua prática é estímulo bastante para a impunidade. Por essa razão, compreensíveis os aplausos para a recente decisão do STF tomada pela maioria de seus juízes (7×4).

Entretanto, faz-se importante acentuar que os efeitos colaterais desta decisão não podem ser desprezados. Antes, por ocasião controle de qualidade da lei da ficha limpa, foi o direito de participação política, e agora, no enfrentamento da impunidade no país, é a liberdade que passa a ser sacrificada com escancarado bullying ao trânsito em julgado.

Soluções animadas pela pressa, desconectadas da Constituição Federal (sobretudo) e das leis, não alcançam progresso algum. O processo existe para chegar-se, legitimamente, a imposição da pena. Difícil, é verdade, mas hão de coexistir repressão ao delito e o respeito às garantias constitucionais pois do contrário a resposta estatal não é justa. O caminho deve ser percorrido em estreita e reta observância das regras previamente estabelecidas. Eis aí o devido processo legal.

Nesta trilha, o direito de defesa há de ser amplo e não manco. O eco não é só da voz do político ou do empresário bilionário que passa (até que enfim!) a ser atingido pela garras da Justiça mas de todo réu, na massacrante maioria dos casos, pobre.

Em 2009, Cezar Peluso, genial ministro da Suprema Corte, ocasião em que discutia esse mesmo assunto e apreensivo com o rumo das discussões, ponderou que a coerência é uma qualidade, dentre outras, que presta contas ao tempo.

Exatamente esse o ponto da despretensiosa análise que ora se faz, marginal à avaliação da ruptura ou não da Constituição, a respeito da recente decisão do STF que poderá levar o Brasil para o topo de mais uma lista, a do país com o maior número de encarcerados.

Se a “voz das ruas” não mais tolera o trânsito em julgado, fato é que, coerentemente com esse novo paradigma, a privação da liberdade antes do trânsito em julgado há de ser atingida em união estável com a obediência irrestrita ao amplo direito de defesa e ao devido processo legal, sem pressa, falta de paciência ou preconceito.

Irrita a ordem jurídica impedir que advogados tenham acesso a investigações de qualquer natureza, menoscabar a importância do habeas corpus, preconceber que a defesa busca procrastinar o processo quando está sujeita a prazos e ao manejo de recursos previstos em lei, privar cidadãos (enquanto réus não perdem esse status) de seus bens sem uma decisão fundamentada e apoiada em fatos concretos, etc e etc.

Isso não representa chororô ou blábláblá. A legitimidade das penas antecipadas estará condicionada a higidez do processo, em que o exercício da jurisdição se dê por inteiro, inclusive prestigiando a jurisprudência dos tribunais superiores de modo a não ser atribuída a defesa o rótulo de responsável pela eternização do processo quando buscará no STJ e no STF a suspensão dos mandados de prisão.

Essa coerência no jogo dialético do processo, que ainda é democrático e garantista da ordem vigente, não pode ser lavada a jato. O resultado pode ser fatal a todos os brasileiros.

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