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Fato consumado

Nunca é tarde relembrar os mandamentos do Advogado professados por Eduardo Couture, especialmente aquele que nos alerta para o seguinte: “Teu dever é lutar pelo Direito, mas no dia em que encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça”.

 E talvez iluminado por essa máxima, o Superior Tribunal de Justiça, meritoriamente apelidado de Corte Cidadã, vem prestigiando a teoria do fato consumado, cuja beleza se aproxima da música de Djavan.

 De acordo com essa teoria[1], estando definitivamente constituída a situação jurídica com o decurso de tempo[2], não pode a mesma passar ao largo da apreciação judicial, sob pena de aviltamento aos princípios da segurança jurídica e o da boa-fé, que visam proteger os cidadãos quando de suas relações com o Estado.

 Sua utilidade é afirmada para situações não raras em que determinada discussão é travada no Poder Judiciário e o cidadão alcança em sede liminar a sua pretensão, mas depois, com o decurso do tempo, o seu direito, analisado numa perspectiva mais ampla, vem a ser negado.

 A questão desafia o Poder Judiciário há longa data. De acordo com estudo realizado pela Desembargadora Federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre, Doutora Marga Inge Barth Tessler[3], só na área da educação foram vários os casos apreciados pela Justiça, dos quais, podemos destacar os seguintes: a discussão em torno do direito de matrícula quando a decisão só veio a ser proferida após a conclusão do curso; a aprovação ou não em determinada série do curso com decisão somente após a formatura; o direito de aprovação no 5º ano do curso de Direito, quando a decisão foi proferida após a colação de grau com os impetrantes já no exercício da profissão; o direito à matrícula, cuja decisão se deu no terceiro ano de vida universitária; o direito de inscrição no vestibular e a decisão, igualmente, só foi prolatada após a conclusão do curso.

 De todos esses casos, uma constante se destaca: a consolidação da situação de fato pelo decurso de tempo. Em decorrência, surge inevitavelmente a pergunta: Pode o cidadão ser prejudicado com a demora do Estado na resolução da questão?

 A resposta negativa, a nosso sentir, deve se impor.

 E por uma razão bem simples. A desconstituição da situação de fato já consolidada somente acarretaria danos ao cidadão, sem qualquer preservação do interesse público.

 À guisa de exemplo, inimaginável o afastamento de médico de suas funções, após prolongado exercício da profissão em prol da sociedade, ao argumento de que o concurso que o habilitou esteve maculado por alguma questão formal.

 Ora, o princípio da razoabilidade há de nortear sempre as decisões judiciais, não sendo coerente determinar, após prolongado decurso de tempo, o afastamento do médico, atitude que somente prejudicaria o atendimento ao público, já tão sofrido com a carência de médicos nos hospitais públicos.

 Não se olvide, aliás, a inteira aplicabilidade de importante regra de hermenêutica traçada na Lei de Introdução ao Código Civil segundo a qual “na aplicação da lei o juiz atenderá os fins sociais a que ela se dirige e as exigências do bem comum” (artigo 5º).

 A regra, como qualquer outra, comporta exceção. Conduta antijurídica premeditada não tem espaço na teoria do fato consumado. Efetivamente, o Direito protege a boa-fé e não pode premiar a torpeza.

 Enfim, isso tudo para se dizer que nem sempre o caso levado ao Poder Judiciário deve contar com a aplicação fria da lei. Se assim o for, desrespeitado estará o mandamento do advogado uruguaio e distante estará a Justiça de todos nós brasileiros.



[1] Entendimento que vem dominando no STJ: 5ª Turma, RMS n. 13.245/DF, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. 17/12/2002; MS 6257/DF, rel. Min. Edson Vidigal, DJ 30.08.99; RMS 11.336/PE, rel. Min. Jorge Scartezzini, DJ 19.02.2001, dentre tantos outros como recentemente o Recurso Especial n. 1.130.985/PR, relatado pelo eminente Ministro Humberto Martins, cujo acórdão foi publicado no DJE em 19/02/2010.

[2] Também, em nome da segurança jurídica, considera a administrativista WEIDA ZANCANER que “o decurso de tempo pode ser, por si mesmo, causa bastante para estabilizar certas situações fazendo-as intocáveis” (Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos, 2ª ed., Malheiros: 1996, p.61).

[3] O fato consumado e a demora na prestação jurisprudencial, R. CEJ, Brasília, n. 27, p. 95-101, out./dez. 2004

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