Há mais de 30 anos Chico Buarque registrava num belíssimo samba que passaria o tempo, página infeliz da nossa história, em que a nossa pátria mãe, tão distraída, dormia sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações.
Não é preciso muito esforço para se constatar que a previsão do notável compositor brasileiro ainda não se concretizou. Por ora, o que se vê é que a atuação concertada da Polícia, Ministério Público e Justiça Federal na operação da lavagem à jato está a despertar a esperança coletiva de que o estandarte do sanatório geral vai passar.
Após 500 dias (completados no último dia 30 de julho), a maior força-tarefa contra a corrupção e lavagem do dinheiro do país, chega no mês do “cachorro louco” com um assunto que possivelmente deverá pautar a agenda política da república brasileira, qual seja, o afastamento dos representantes máximos do povo brasileiro nas conchas côncava e convexa da capital do país, quando são atingidos pelos tentáculos da superlativa operação “Lava Jato”.
Inegável que essa é outra página infeliz da nossa história. No momento de amadurecimento institucional do país é deveras indigesto discutir se um Poder (o Judiciário) pode determinar que representante(s) de outro Poder (o Legislativo) seja(m) afastado(s) de suas funções quando está(ão) sendo investigado(s) e possivelmente venha(m) a ser processado(s) pela prática de corrupção.
Nada obstante, e sem antecipar qualquer juízo de valor quanto ao envolvimento do senador Renan Calheiros (PMDB-AL) e do deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ) na prática criminosa que vem sangrando os recursos nacionais, a questão saliente é o imperioso afastamento de ambos de suas funções, ao menos da presidência das casas legislativas.
Em tempos de crise do sistema representativo brasileiro em união estável com o anseio da população pela moralização dos mandatos eletivos no país, não soa desarrazoado sustentar o afastamento.
Isso se justificaria ao menos por dois motivos.
O primeiro: ter a cúpula da CPI da Petrobras, formada em sua maioria por aliados do presidente da Câmara dos Deputados, solicitado à empresa de espionagem “Kroll” que dê prioridades às investigações sobre o lobista Júlio Camargo, que acusou o deputado federal peemedebista de ter pedido propina de US$ 5 milhões no esquema de corrupção na Petrobras (jornal “O Estado de São Paulo, em 30-07-2015).
O segundo: a advogada Beatriz Catta Preta, responsável pela defesa de diversos réus da “Lava Jato”, tendo fechado nove acordos de delações premiadas, ser ameaçada de forma velada por integrantes da CPI, levando-a a encerrar sua carreira na advocacia (edição do jornal nacional, da TV Globo, em 30-07-2015). Beatriz, que havia sido convocada para comparecer à CPI após o lobista Julio Camargo alterar versão de depoimentos na JF/PR e citar o envolvimento do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, foi desobrigada de prestar esclarecimentos à CPI por decisão da Presidência da Suprema Corte no último dia 30 de julho (não se quer aqui dizer que ameaça, ainda mais “velada”, justifique desistir de algo, sobretudo da nobilíssima profissão exercida pelos Advogados e Advogadas).
Se o postulado republicano repele privilégios e não tolera discriminações, não há como outorgar tratamento diferenciado aos detentores de mandato, imunizando-os do afastamento, quando aqueles que não detêm mandato popular, nas hipóteses de influir na apuração da irregularidade, podem ser afastados de suas funções públicas e até mesmo serem presos preventivamente.
Longe de querer relativizar a garantia constitucional da presunção de inocência, mormente diante do protagonismo de delações de duvidosa validade quando o premiado só colabora quando está preso, não há como relegar à segundo plano outros valores constitucionais da mesma ordem de grandeza direcionados à probidade administrativa e à moralidade para o exercício popular. Essa premissa, aliás, foi considerada pelo STF no “controle de qualidade” da lei da “ficha limpa” ocasião em que concluiu que a balança devia pender em favor da nova lei pois, opostamente ao que poderia parecer, a democracia não está em conflito com a moralidade – ao revés, uma invalidação do mencionado diploma legal afrontaria a própria democracia, à custa do abuso de direitos políticos.
Talvez vergonha seja a palavra mais apta a traduzir o sentimento da nação quando se depara com a mera suspeita de um representante seu estar envolvido em esquema de corrupção. Tanto melhor se partisse do próprio político a iniciativa de afastamento de suas funções e dedicação à sua defesa, restabelecendo legitimamente o exercício do mandato popular após o esclarecimento dos fatos.
Enquanto isso não acontece, permanece viva a metralhadora oratória do Padre Vieira contra os abusos do sistema português nada distante da realidade atual: “Perde-se o Brasil, Senhor (digamo-lo em uma palavra) porque alguns ministros de Sua Majestade não vêm cá buscar o nosso bem, vêm cá buscar nossos bens (…)” (Sermões, RJ: Globo, 1989, p. 173).
A expectativa, contudo, é de que o Poder Judiciário, cuja atuação não rima com espetáculo, persiga firme e sentinela das normas constitucionais, ponderando com equilíbrio os valores supremos do povo brasileiro que, acima de tudo, sonha com o extermínio da ala dos barões famintos desse deplorável carnaval da corrupção.
Publicado no jornal Cruzeiro do Sul em 04-09-2015