Sean Abib[1]
Rodrigo Gomes Monteiro[2]
Ao ensejo da discussão do Projeto de Lei Anticrime, e em especial de um de seus itens – o plea bargain ou “medidas para introduzir soluções negociadas no Código de Processo Penal e na Lei de Improbidade” -, aproveitamos para observar algo tangente a questão e que reforça a crítica ao modelo negocial proposto e importado dos Estados Unidos da América: a percepção quanto a um certo hiperbolismo do Ministério Público no exercício de proposta de transação penal nos crimes tributários.
Não é incomum ver nessas imputações a anacrônica conjugação de uma proposta de transação penal em que a acusação ficará satisfeita se, e somente se, for promovida a quitação integral do (suposto) débito tributário.
Muito embora a Lei (9.099/95, art. 76) seja clara em restringir o objeto da transação penal às penas restritivas de direitos ou multa, o que se vê na prática é a criação desse obstáculo jurídico como condição para se evitar o início da ação penal.
Nada obstante essa posição do Ministério Público, temos que a mesma se afigura desproporcional, incongruente com a finalidade da Lei 9.099/95 e tem aptidão para representar constrangimento ilegal.
Isso porque muitas das vezes o crédito tributário está sendo discutido judicialmente e o pagamento integral na esfera criminal suprime da instância competente a análise da legitimidade ou não da atuação do Fisco. Desnecessário esclarecer que não é papel da Justiça Criminal equacionar essas questões.
Diz-se mais. Essa ação extravagante de buscar o recolhimento de tributos na esfera criminal viola o princípio da proporcionalidade.
Tal conclusão se dá a partir da doutrina constitucional que compreende o princípio da proporcionalidade como a ideia precípua de limitação da ação estatal perante o cidadão, sendo corolário na discussão a partir da mensura desse ato em cada ação legislativa ou jurisdicional, conforme aponta Ingo Wolfang Sarlet[3].
Willis Santiago Guerra Filho igualmente pondera como fundamental a relação de equilíbrio do princípio da proporcionalidade onde a ação estatal não pode, em maneira alguma, vilipendiar o núcleo essencial do direito fundamental em observância[4]. Nesse caso, a invocação duma medida atípica como forma de transacionar a questão referente a um suposto crime tributário viola o cerne fundamental do agir estatal em campo criminal: o princípio da legalidade.
No âmbito jurisprudencial brasileiro, o princípio da proporcionalidade é aplicado de acordo com a doutrina mencionada, ficando evidenciado a partir do julgamento do Habeas Corpus nº 104.410/RS quando o Supremo Tribunal Federal expôs a necessidade de se ter a proporcionalidade como um mecanismo de defesa do cidadão ante ao arbítrio estatal, inclusive sob limite dos chamados mandados de criminalização[5]. O aludido princípio também gravitou em torno do famoso caso do “pingente de arma” no ano de 2016. Naquela oportunidade, a Suprema Corte concedeu ordem de Habeas corpus por entender que a medida aplicada-punição nos termos do artigo 16 do Estatuto do Desarmamento- não cabia como adequada para um cidadão que tinha feito dum projetil um pingente[6].
Volvendo a discussão proposta, não é proporcional – até porque distanciado do princípio da legalidade – exigir o pagamento do tributo como condição para a transação penal.
Em termos objetivos, diz-se isso porque o instituto da transação penal não tem por vocação alcançar a reparação do dano causado em crimes de ação penal incondicionada, providência pertinente tão somente após a deflagração da instância penal, quer no âmbito da suspensão condicional do processo (Lei 9.099/95, art. 89, §1º, I), quer em decorrência da sentença penal condenatória (Código de Processo Penal, art. 387, IV).
Em última análise, constrange-se o cidadão envolvido numa situação dessa natureza a adimplir todo débito tributário, mesmo que esteja a discuti-lo na esfera judicial apropriada, sob pena de ser submetido às agruras do processo penal.
A propósito, aliás, Eduardo Fonseca e Marcio Valentim sustentam como o princípio da proporcionalidade pode revelar “falsos coringas” no processo penal. À luz dos ensinamentos de Guerra Filho, apontam Fonseca e Valentim que, sob o crivo da proporcionalidade, muitos atos tidos como hodiernos na Justiça Criminal são flagrantemente inconstitucionais pois submetem o cidadão ao jugo da coletividade e das autoridades. Vale a citação:
Pode-se inferir, portanto, que tomar decisões com base em institutos que apresentam fundamentos constitucionais questionáveis é agir em desacordo com a necessidade de racionalidade própria do sistema, pois falar-se em justiça implica em razão, e, nesse sentido, o Princípio da Proporcionalidade é aquilo que pode defraudar os aspectos supostamente constitucionais da busca pela verdade real e do in dubio pro societate, garantindo, com a amplitude mesma do Princípio já largamente esboçada, a validade e legitimidade dos decisórios. O julgador precisa apresentar responsabilidade política nos seus decisum, que significa que deve tomar a noção de equilibrium como condutora de sua função constitucional, suspendendo seus vieses e pré-juízos em prol da melhor conformidade da decisão com a organicidade do sistema constitucional penal[7].
E, nessa ordem de ideias, fincar como única via transacional a quitação do débito tributário apenas torna flagrante que o imponderado, inadequado e desnecessário ato estatal representa nítido vilipêndio ao cidadão, servindo como perfeita extensão ao raciocínio de Fonseca e Valentim.
Por essa via, nos é claro que a proposta de transação penal fundada no pagamento integral dos tributos representa um “falso coringa” na atuação da jurisdição criminal na medida em que se traveste um instituto despenalizador apenas se forem cumpridas, em absolutas, as pretensões inquisidoras: no caso, de forma coercitiva, com a marca indelével do direito penal, a recomposição do erário em decorrência da atuação, nem sempre escorreita, do Fisco.
Pelos mesmos fundamentos, jamais olvidando a natureza fragmentária do direito penal, compreende-se que representa medida desproporcional a proposta de transação penal fundada na quitação dos impostos e corolários quando em consideração os crimes tributários.
Efetivamente, não é próprio do instituto despenalizador previsto no artigo 76 da Lei 9.099/95 funcionar como instrumento de repatriação ou de ressarcimento ao erário.
Ademais, a confirmar que a utilização da transação penal como meio para satisfação de crédito tributário é desarrazoada, basta lembrar que, nos termos do artigo 9º, § 2º, da Lei 10.684/2003, o pagamento integral do tributo culminaria na própria extinção da punibilidade do investigado, não podendo, por questão lógica, ser condição para concessão de medida despenalizadora.
Bem por isso é que se reafirma que a condição observada se mostra gravemente excessiva, desarrazoada e desproporcional, não se olvidando que se o investigado efetuar o recolhimento do crédito tributário e, posteriormente, concluir-se na via adequada que razão lhe assistia quanto à não incidência da exação, inevitável será a tormentosa submissão ao procedimento do precatório para se tentar a restituição daquilo que o investigado, desde o início, afirmava ser indevido.
Propostas desse jaez traduzem abuso do direito transacional e importam nítido constrangimento para que o cidadão efetue o integral pagamento daquilo que pode estar sendo alvo de discussão judicial na esfera competente para só assim se livrar do processo penal e do estigma que esse carrega.
[1] Mestrando em direito penal pela PUC-SP; graduado em Direito pela PUC/PR; Advogado.
[2] Especialista em direito penal pela Escola Paulista da Magistratura. Advogado.
[3] SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2017 p. 222.
[4] GUERRA FILHO, Willis Santiago. Dignidade Humana, princípio da Proporcionalidade e teoria dos direitos fundamentais. Tratado Luso-brasileiro da dignidade humana. 2. Ed.. in: Miranda, Jorge; SILVA, Marco. São Paulo: 2013, p. 310.
[5] STF, 2ª Turma, HC 104.410, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 06.03.2012.
[6] STF, 2ª Turma, HC 133.984, rel. Min. Cármen Lúcia, j. 06.03.2012.
[7] FONSECA, Eduardo; CORREA, Marcio Valentim. O princípio da proporcionalidade – ainda e sempre que necessário – também como revelador de falsos princípios processuais penais. p. 169-182. Em: Direito Penal, Processo Penal, Execução Penal e Criminologia nos 30 anos da Constituição Cidadã: novos caminhos e desafios. ABIB, Sean; FONSECA, Eduardo; LOPES, Anderson; MEIRELLES, João; PACHANI, Leandro (organizadores). São Paulo, D’Plácido, 2018.